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11 de novembro de 2019

O Fórum Mundial da Bicicleta e as cidades

Se o fórum está em sua oitava edição, uma pergunta parece honesta e pertinente: o que hospedar um evento como esses poderia trazer às cidades?

A vida busca espaço nas ruas quando não há calçadas

Para 81% das pessoas entrevistadas durante a pesquisa Perfil de Quem Usa a Bicicleta 2015, fatores relacionados à segurança viária são os principais inibidores para o uso da bicicleta. A bicicleta se relaciona com os mais diversos temas: mobilidade, saúde, esporte, bem estar, cultura e – cada vez mais – ao combate às mudanças climáticas. Mas se queremos colocar mais pessoas pedalando nas ruas, é pela segurança viária onde tudo começa. Enquanto acharem que podem morrer ou se machucar, as pessoas não pedalarão. Ou poucas o farão. É simples assim.

Nesses últimos dois anos, à frente de um projeto junto à Iniciativa Global de Segurança Viária (GRSP), a Ciclocidade esteve voltada em investigar a fundo a relação entre mobilidade ativa e segurança viária. Georreferenciamos 13,6 milhões de multas para provar que a fiscalização está concentrada na região central de São Paulo, além de ter olhos para apenas 10 enquadramentos – significando que ciclistas e pedestres são protegidos pela fiscalização apenas “por tabela”. Mostramos que, quando o SAMU é obrigado a atender 75% das ocorrências e 55% das vítimas vai para o SUS, a falta de segurança no trânsito é um problema de saúde pública. Expusemos o envolvimento dos ônibus em 40% das mortes de ciclistas em 2017, diante de um histórico de matar um quarto de todos os ciclistas nos últimos anos. Mapeamos as ruas mais perigosas de cada uma das 32 subprefeituras da capital paulista, assim como percorremos todos os 484km da malha cicloviária existente para evidenciar o estado crítico em que se encontravam, após quase dois anos de falta de investimento. É esse o trabalho que fomos mostrar no 8º Fórum Mundial da Bicicleta.

Se o fórum está em sua oitava edição, preparando-se para sair da América Latina (Nepal 2020) e voltar de novo no ano seguinte (Argentina 2021), uma pergunta parece honesta e pertinente: o que hospedar um evento como esses poderia trazer às cidades?

Como acabei não pedalando, minha experiência em Quito se deu com o olhar de quem anda a pé. Embora a capital equatoriana tenha um sistema de ônibus extremamente interessante, com tarifa acessível e BRT, quem caminha pela cidade aprende uma lição muito rápido. As regras internacionais de priorização a pedestres parecem não se aplicar a ela. O que se assemelha a uma demarcação de faixa de pedestres é, na verdade, uma alça de veículos que virarão à esquerda. Os semáforos para quem caminha, quando existem, podem estar somente em um lado da rua. E esqueça a prioridade: quem reina mesmo é o carro, pois quando uma faixa de pedestre é de fato uma faixa de pedestre, ela se torna invisível para motoristas locais.

Não é o que parece: esta “faixa de pedestres” é, na verdade, uma alça para de veículos que vão virar à esquerda. Quase fomos atropelados ali, bem onde este cidadão (também) atravessa.

É curioso observar essas mesmas características no centro histórico da cidade. Tombado pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade desde 1978, trata-se de uma área de afluxo natural de turistas mas, mais do que isso, de vibrantes fachadas ativas de comércios locais. Comércios estes que negociam de tudo: de pães e sorvetes a cortes de cabelo e lápides de cemitério (sim, você não leu errado).

Esqueça as fachadas ativas de manual, com designs transcendentais e uma utopia de desenvolvimento higienista. As fachadas de Quito são vida pura, em suas mais diversas formas. Um restaurante é um fogão e uma área onde cabem duas mesas. Na loja de grãos, o atendimento é feito já na rua, pois para além do balcão só cabem os itens de estoque. E a boca de saída de uma viela torna-se um ambiente perfeito para negociar frutas e legumes ao lado de crianças jogando bola.

Tudo isso acontece ali, em ruas amplas, calçadas estreitas e com pessoas se aglomerando para caber no pequeno espaço que lhes cabe. Enquanto o automóvel passa tranquilo, sem apuros, com faixas reservadas até mesmo para estacionar.

De pães e grãos a cortes de cabelo e sepulturas: tudo se comercializa nas vibrantes fachadas ativas de Quito

Talvez seja essa uma das maiores contribuições que hospedar um Fórum Mundial de Bicicleta possa trazer às sedes. O tema da segurança viária está diretamente relacionado ao redesenho de ruas, o que por sua vez se comunica fortemente com a questão do acesso à cidade e à priorização dos modos ativos e coletivos de locomoção. Reconhecer o que há de vibrante em uma território e trazer ferramentas para que ele mesmo possa se reimaginar e se reinventar a partir de experiências e vivências internacionais seria incrível.

Oficina de redesenho de ruas dada pela NACTO na quarta-feira pré-FMB8

O FMB8 deu importantes passos nessa direção e hospedou uma oficina fornecida pela NACTO a gestores públicos na quarta-feira anterior ao fórum. Era parte da programação oficial, mas fora dos quatro dias de atividades concentradas. Ali, três ruas mais críticas para a segurança viária haviam sido previamente selecionadas. Diferentes grupos compostos principalmente de técnicos da prefeitura, mas com o apoio de participantes do fórum, trabalharam soluções possíveis de redesenho.

O Guia Global de Desenho de Ruas (a versão em português para download está aqui) é notório por trazer soluções que priorizam pedestres e ciclistas, e foi uma experiência riquíssima ver em primeira mão a timidez inicial de técnicas e técnicos em evitar tocar no cerne dos problemas – devido a custos, ao histórico das obras e à conjuntura política – dar origem a visões muito robustas de como aquelas mesmas ruas poderiam ser.

É este o momento mais interessante, em que as vivências e experiências internacionais se juntam e reconhecem o que há de mais forte e vivo nas cidades para celebrá-las, fortalecê-las e criar sementes dentro dessas mesmas cidades para que possam mudar no futuro.

Para voltar ao nosso exemplo, reconhecer e assumir a vocação turística e comercial da região central de Quito poderia usar o exemplo de uma cidade próxima, também turística. Baños ampliou suas calçadas e limitou a largura da rua para caber apenas um veículo. O estreitamento da pista de rolamento reduz naturalmente a velocidade, tornando o compartilhamento da via com ciclistas muito mais fácil. Faltaria apenas implantar faixas de travessia em nível (elevadas para os automóveis) nas esquinas, consolidando o acalmamento de tráfego.

Abaixo, diferentes implementações da mesma ideia: com vagas de estacionamento em parte da quadra, sem vagas e com bolsões de carga/descarga para o comércio.

Três exemplos de estreitamento de vias e ampliação de calçadas em Baños: com vagas de estacionamento, sem vagas e com bolsões para carga/descarga

Ir por um caminho como esse poderia até mesmo mitigar um dos problemas centrais do Fórum Mundial da Bicicleta, e que aparece também nos nacionais Biciculturas. Há muitas atividades ao mesmo tempo, um público muito seccionado e, às vezes, pouca interação com o poder público local. Valeria a experiência investir em como usar todo esse conhecimento coletivo para vislumbrar soluções locais, até mesmo realizar intervenções de urbanismo tático, e ver o resultado. Afinal, quem não se emociona com um bebedouro público sendo usado para refrescar uma criança em um dia de calor?

Bebedouro em calçadão da região central de Quito, tudo de bom

 

Texto: Flávio Soares – Coordenador do projeto da Ciclocidade – Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo junto à Iniciativa Global de Segurança Viária (GRSP).

Este texto foi composto para o Edital 01/2019 “Você no FM8” promovido pela UCB – União de Ciclistas do Brasil e financiado pelo Itaú como resultado da participação do/a autor/a no 8º Fórum Mundial da Bicicleta (Quito/Equador – 25 e 28/04/2019).