Canal Aberto N° 02
Macromobilidade
Por Glaucia Pereira, Multiplicidade Mobilidade
Horace Dediu, empresário estadunidense, cunhou o termo micromobilidade pela primeira vez em 2017 no Tech Festival, em Copenhagem. Com isso, entendia que o conceito articulava novos modos ativos de transporte a modos já consolidados de “pequeno porte” como a bicicleta e as viagens a pé. A ideia central é a de que os veículos da micromobilidade atendam a três características: pesem menos que 500kg, sejam utilizados como meio de transporte e sejam acionados por propulsão humana ou motores elétricos. Além, é claro, de serem não poluentes.
O objetivo deste texto é problematizar o uso do prefixo “micro” para se falar de bicicleta. A pesagem é problemática porque está referenciada nos automóveis. Por que o peso dos modos tem de ser de até 500kg se as motocicletas, por exemplo, pesam cerca de 1/3 disso? Assim como em várias situações cotidianas e políticas públicas relacionadas à mobilidade urbana, há toda uma estrutura que favorece os automóveis e seus condutores em detrimento de outros atores da mobilidade, configurando o que chamamos como carrocracia. Dessa forma, o termo “micro” subordina a bicicleta ao automóvel mais uma vez.
Em relação ao uso da bicicleta como meio de transporte, dados do Sistema de Informação da ANTP estimam 3% de viagens em municípios com mais de 60 mil habitantes. É importante nos atentarmos para o fato de que boa parte da população é forçosamente condicionada a morar longe de seus empregos por razões socioeconômicas. Há outros fatores que dificultam a mobilidade através da bicicleta, como o espaço urbano para circulação pública ser destinado em grande parte aos automóveis privados, o que causa desconforto e insegurança. Além disso, as vias com topografias mais planas são comumente destinadas ao grande tráfego de veículos nas cidades brasileiras.
É importante destacar ainda que no caso das mulheres, a combinação de certos horários, lugares e viagens de cuidado também podem afastá-las da bicicleta como modo de transporte. Ou seja, se as viagens de bicicleta são poucas é porque as condições socioeconômicas e urbanísticas não possibilitam que pessoas usem mais a bicicleta como meio de transporte. São as mesmas condições urbanas estruturais impostas a ciclistas que condicionam hoje suas viagens à quilometragem reduzida.
Em termos quantitativos, vale incluir a reflexão sobre a mobilidade a pé. A mobilidade a pé é gratuita e universal e a mais natural em propulsão humana. O termo micromobilidade pretende abranger esse modo ativo de maior alcance na sociedade, que responde aproximadamente por 40% das viagens no Brasil. Somado a isso, no caso específico das pesquisas origem destino em regiões metropolitanas, há ainda a subnotificação de viagens curtas a pé (por exemplo, na Região Metropolitana de São Paulo, viagens com menos de 500 metros só são registradas se forem para trabalho ou escola – uma ida a pé na padaria da esquina não é registrada). Dessa forma, a problemática do termo reside exatamente na questão quantitativa: como denominar de “micro” um processo que envolve o grupo mais numeroso da sociedade?
Ademais, intrinsecamente associada às escolhas cotidianas dos modos de transporte, é preciso compreender que a mobilidade urbana tem gênero, raça e classe social. As viagens a pé são feitas em maior parte pelo público feminino – 56%. As entregas por bicicleta são feitas predominantemente por homens negros – 71%. Os domicílios formados por somente negros não possuem automóveis – 70%. Nesse caso, como o prefixo “micro” contribui para a redução das desigualdades sociais e promoção da inclusão social, que são objetivos da Política Nacional de Mobilidade Urbana, já que aparenta diminuir a importância dessas viagens?
Foto de Aline OS para Senñorias Courrier
A bicicleta precisa ter o suporte necessário para que as pessoas se desloquem de maneira segura, humana e sustentável. Portanto, em seus duzentos anos de existência a bicicleta nunca coube em um termo tão pequeno. É importante compreender que o termo “micro” condiciona a situação atual da mobilidade por bicicleta para suas perspectivas futuras, as subordinando. Precisamos que bicicleta seja integrada de forma ampla e geral na sociedade, nas políticas públicas e no imaginário social. Por que correr o risco de apequená-la com um termo que não condiz com sua grandeza?