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25 de julho de 2024

Manifesto pelo Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana Caribenha

“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”

Angela Davis


“Tem ações que o sujeito branco pode fazer no cotidiano para mexer na estrutura. A questão do negro não é para o negro resolver, é para a nação brasileira.” 

Conceição Evaristo

 

Falar sobre o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha é, além de de-marcar uma luta específica, contar outras histórias sobre gênero, mulheres e sobre nosso território. Célia Xakriabá diz que “Antes do Brasil da Coroa, existe o Brasil do Cocar. Antes do Brasil do verde e amarelo, existe o Brasil do jenipapo e do urucum”. Além da história de mais de mil povos em Abya Yala, como é chamado o território Latino Americano por muitos povos indígenas, é preciso considerar, como também diz Lélia Gonzalez, nossa Amefricanidade.  

 

“Trata-se de um olhar novo e criativo no enfoque da formação histórico-cultural do Brasil, que (…) geralmente se afirma: um país cujas formações (…) são exclusivamente europeias brancas. Ao contrário, ele é uma América Africana cuja latinidade, (…) teve trocado o T pelo D para, aí sim, ter o seu nome assumido com todas as letras: Améfrica Ladina (não é por acaso que a neurose cultural brasileira tem no racismo o seu sintoma por excelência). Nesse contexto, todos os brasileiros (e não apenas os “pretos” e “pardos” do IBGE) são ladino-amefricanos. “ Lélia Gonzalez (1988).


Repensar nosso lugar no mundo faz com que acessemos outras histórias sobre a nossa existência. Do mesmo modo que nosso país é uma invenção a partir de uma invasão, as mulheres, enquanto uma categoria discursiva, também são sujeitas inventadas política e economicamente, sendo sua subordinação algo universal, especialmente no ocidente. 

O mundo colonial-branco-masculino-hetero-cisnormativo-burguês utilizou de uma bio-lógica como ideologia para explorar, organizar e categorizar o mundo diferente de si. Para ampliar o domínio de territórios precisou-se marcar e categorizar os corpos nos territórios. O racismo, e tantas outras opressões, é fruto da monocultura colonial, que, como nos diz Geni Nuñez Guarani, afeta principalmente corpos negros e indígenas, mas também a terra. É também por isso que Oyèrónké Oyewùmí fala que em culturas Iorubá, e também indígenas, não havia a categoria homem e/ou mulher, nem crianças e velhos, sendo que o corpo bio-lógico não era a base destas sociedades para definir seus papéis na vida comunitária. Tampouco havia essa separação entre o humano e não humano. Rios são avós. Águas são mães. Bichos e plantas são parentes.

É a partir do movimento de mulheres negras, latinas e caribenhas que o próprio movimento de mulheres começa a ser confrontado, os estudos de gênero começam a ganhar outros corpos e a história do mundo passa a ser contada de outras perspectivas.

“Ao reivindicar nossa diferença enquanto mulheres negras, enquanto amefricanas, sabemos bem o quanto trazemos em nós as marcas da exploração econômica e da subordinação racial e sexual. Por isso mesmo, trazemos conosco a marca da libertação de todos e todas. ”  Lélia Gonzalez

 

Havia uma ideia inventada sobre a mulher, mas que em nada se aproximava da vivência de mulheres não brancas. Quando Sojourner Truth, questiona “E eu não sou uma mulher?”, em 1851², ela está problematizando uma outra perspectiva de gênero a partir também da raça, pois tudo que era dito sobre mulheres não fazia parte da realidade dela enquanto mulher negra, com múltiplas jornadas de trabalho e opressões, inclusive de mulheres brancas.

 

“Eu não sou livre enquanto alguma mulher não o for, mesmo quando as correntes dela forem muito diferentes das minhas.”

Audre Lorde

 

A dominação branca masculina hetero cisnormativa e burguesa sobre a produção de discursos políticos de conhecimento em relação a vida, especificamente sobre a vida das mulheres, dificultou e ainda dificulta muitos acessos e oportunidades. Entretanto, a re-união delas, especificamente no sul global, entre mulheres negras, latinas e caribenhas, vem para internacionalizar os discursos e olhares, e combater o racismo e o machismo sofrido pelas mulheres negras no mundo. Essa re-união também reivindica por políticas públicas de combate às opressões de raça e gênero que atravessam suas vidas. O dia 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, é marcado mundialmente desde 1992. 

No Brasil, através da Lei 12.987/2014, ficou estabelecido que o dia 25 de julho é o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. Tereza de Benguela é, na história do Brasil, uma líder quilombola do Quilombo Quariterê, localizado na fronteira do Mato Grosso com a Bolívia. Ela é conhecida também como a Rainha Tereza do Pantanal, liderando democraticamente por 20 anos a resistência afro-indígena contra o governo nacional escravagista em meados dos anos de 1700.

Além de compartilhar os princípios do dia internacional, no Brasil a data também tem como propósito dar visibilidade para a história de mulheres negras na história do país. É também reivindicar as diferenças e marcar que aqui se fala outras línguas e cada uma delas tem um mundo para nos contar. Falamos além do português, o pretuguês, conforme afirma Lélia Gonzalez. Sem contar as mais de 250 línguas indígenas, entre tantos povos que vivem em Abya Yala. 

 

Mas e o que a bicicleta tem a ver com isso?

 

O Relatório Global de Disparidade de Gênero avaliou aspectos políticos, econômicos, educacionais e de saúde em cerca de 146 países e trouxe à tona uma realidade chocante: nenhuma de nós conhecerá um mundo com paridade total de gênero e raça. Levaremos 134 anos para termos paridade de gênero, 152 anos para que salários e oportunidades de trabalho sejam igualitários, 169 anos para termos as mesmas oportunidades na política. Se considerarmos o marcador de raça para as mulheres, a situação só piora. Estudos apontam que mulheres negras são as maiores vítimas em casos de violência, violentadas pelo racismo e o machismo, em comparação com mulheres brancas.

 

“Entre a esquerda e a direita, eu continuo preta”.

Sueli Carneiro

 

Não é mais possível pensarmos estratégias e políticas públicas no nosso território sem considerarmos as populações que nele circulam e se deslocam. Não podemos mais desconsiderar a experiência de corpos dissidentes no que tange a mobilidade urbana: do corpo da mulher-cis-trans-negra-indígena-latina. Dos corpos femininos e racializados. Pois tudo que foi inventado sobre estes corpos e territórios precisam ser re-considerados como articulação política em todos os espaços de poder. Que possamos levar a pauta de gênero, raça e território, além de classe, etarismo e capacitismo, em todos os nossos debates. Pois onde houver uma mulher, negra, amefricana e indígena, e ela tenha espaços seguros para ser e estar no mundo, é sinal de que podemos criar estratégias de reparação e transformar positivamente a vida de todas as pessoas.

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²  Esse discurso foi proferido como uma intervenção na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos, em 1851. Em uma reunião de clérigos onde se discutiam os direitos da mulher, Sojourner levantou-se para falar apos ouvir de pastores presentes que mulheres não deveriam ter os mesmos direitos que os homens, porque seriam frágeis, intelectualmente débeis, porque Jesus foi um homem e não uma mulher e porque, por fim, a primeira mulher fora uma pecadora. (Fonte: https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/ )