Insurgências feministas contra a violência política
O debate sobre gênero pareceu ser a tônica do FMB8 – Foro Mundial de la Bicicleta, ocorrido em Quito, Equador, entre 24 e 28 de abril de 2019. A constituição de uma Comissão de Gênero e Dissidência, durante a organização do evento, confirma que o FMB está cada vez mais preocupado com essa questão. Muitas atividades (debates, palestras, oficinas) tiveram seus temas atravessados por essa categoria tão importante para compreender as estruturas sociais, consequentemente, os efeitos que essa categoria exerce sobre a mobilidade cotidiana das pessoas.
Como participante dos últimos seis fóruns – acompanho o FMB desde 2014 –, é possível identificar uma crescente presença de mulheres tanto na participação das mais variadas atividades do FMB, quanto na sua própria organização. O gráfico no topo do texto demonstra essa realidade, com a participação de mulheres nas atividades subindo de 32,04% no FMB4 para 43,32% no FMB7.
Os dados a respeito da participação de homens e mulheres nos FMB foram adquiridos através da análise da programação dos eventos, ocorridos nas cidades de Curitiba em 2014, Medellín em 2015, Santiago em 2016, Cidade do México em 2017, Lima em 2018. O primeiro e o segundo FMB, ambos ocorridos em Porto Alegre nos anos de 2012 e 2013, não foram considerados porque adotamos o critério da observação participante, ou seja, a análise foi realizada apenas dos eventos que estive presente, a fim de agregar uma percepção qualitativa aos dados adquiridos.
O que se pôde perceber, ao longo desses anos, é que a crescente participação de mulheres, aliada ao engajamento das lutas feministas, possibilitou ao movimento cicloativista, consequentemente ao FMB, um cenário potencializador de mudanças paradigmáticas. Ainda que seja comum nos depararmos com os limites desse processo, haja vista os inúmeros conflitos e episódios sexistas, podemos dizer que hoje nos encontramos num caminho sem volta a respeito do lugar que esse debate ocupa.
A cada FMB se conquista um espaço a mais, se qualifica a luta, se amplia a causa. Não é mais possível falar em mobilidade ciclística sem no mínimo falar de gênero, classe e identidade étnica. As diversas experiências, realidades e posicionalidades precisam manter-se como parte da construção desse evento, assim como da construção de nossas cidades.
Foi justamente pensando sobre conjuntura que decidimos partilhar, no FMB8 o trabalho Violência Política e mobilidade urbana: experiências de mulheres cicloativistas. O conceito de violência política adotado aqui compreende, de acordo com a professora García (2017)[1], “todas aquelas condutas, ações ou omissões infringidas às mulheres que têm por objetivo limitar seu acesso ao espaço público, entendido como o espaço político da livre manifestação, da tomada de decisões, informal ou formalmente, ou seja, o acesso das mulheres no espaço da praça pública, em qualquer de suas manifestações: física (manifestações, marchas, reuniões, entre outras) ou virtual (internet, redes sociais etc.), bem como por sua participação em debates de maneira oral ou escrita, com isso se estende a violência política para todas as mulheres que estejam ou não no espaço formal da política, neste último caso, considerando as mulheres dos movimentos sociais, as jornalistas e formadoras de opinião”.
As mulheres vêm conseguindo combater e, até mesmo, superar essa violência, ocupando cada vez mais lugares nos movimentos sociais, assim como é possível observar no próprio movimento cicloativista.
Entretanto, a presença de mulheres na gestão em órgãos públicos ainda é incipiente, a exemplo das secretarias municipais de transporte e mobilidade. De acordo com IBGE (2017), 90,3% desses órgãos são comandos por homens.
Nesse sentido, o nosso trabalho no FMB8 teve o intuito de apresentar o Mapa de Relieve[2] como um instrumento metodológico capaz de colocar em evidência, de forma visual, experiências de mulheres cicloativistas no seu cotidiano em bicicleta pela cidade. Os dados são adquiridos através de uma ferramenta online, que interseccionam os lugares (dimensão espacial), as estruturas de poder exercida sobre a mobilidade feminina (dimensão social) e suas experiências pessoais (dimensão corporal).
No FMB não foi possível expor os dados obtidos, porque faz parte da minha tese de doutorado que, todavia, não foi finalizada, mas a ideia central de apresentar esse instrumento metodológico vai ao encontro de pensar a cidade a partir da perspectiva de gênero e através das experiências cotidianas de quem faz e vive a cidade.
Ademais, é importante ressaltar que esse trabalho só foi (ainda é) possível porque sua construção tem a cooperação de mulheres cicloativistas. Esse trabalho é um dos exemplos de que o envolvimento cada vez maior de mulheres no cicloativismo contribui para a construção do conhecimento, numa outra lógica epistêmica, assim como para a transformação de cidades.
[1] GARCÍA, Verônica Ibarra. Violência Política: uma exploração desde a geografia feminista. SILVA, Joseli Maria; ORNAT, Marcio Jose, CHIMIN JUNIOR, Alides Baptista. Diálogos Ibero-Latino-Americanos sobre geografias feministas e das sexualidades. Ponta Grossa: Todapalavra, 2017.
[2] A metodologia dos Mapas de Relieve de Experiências foi criada pela professora Maria Rodó-de-Zátare em sua tese de doutorado, para demonstrar espacialmente as experiências de mulheres jovens lésbicas.
Texto: Roberta Raquel, doutoranda em Geografia pela UFSC e professora do IFC Camboriú, cicloativista associada à UCB.
Este texto foi composto para o Edital 01/2019 “Você no FM8” promovido pela UCB – União de Ciclistas do Brasil e financiado pelo Itaú como resultado da participação do/a autor/a no 8º Fórum Mundial da Bicicleta (Quito/Equador – 25 e 28/04/2019).