Ciclovias de lazer: reciclando cidades
Muita gente gostaria de vivenciar aquela sensação gostosa de botar cabelos ao vento, de se deslocar com seus próprios esforços, de interagir com o espaço público, de impactar menos sobre a natureza, de não demandar oceanos de dinheiro para obras rodoviárias gigantescas – mas não o faz porque sente-se insegura de fazê-lo.
Permitir esse tipo de vivência às pessoas de diversas idades, de todos os gêneros, de variadas classes sociais, é a maior contribuição das vias de recreação ativa: ciclovias de domingo, ciclofaixas de lazer, ruas recreativas e similares, que têm sido instaladas em diversas cidades brasileiras.
Boa parte das iniciativas tem ciclovia ou ciclofaixa no nome, mas não são exclusivas para ciclistas. Mesmo assim, não perdem a pertinência, pois mesmo desenhando em um percurso linear, geralmente as pessoas nelas circulam várias vezes. Além disso, por recorrentes a cada período, geralmente semanal, colocam seus usuários em um ritmo cíclico de lazer ativo.
Se uma criança não pode ir de bicicleta para a escola, se ela não dispõe de um parque ou de uma rua minimamente segura para pedalar, as ruas recreativas são um excelente espaço para curtir a bicicleta. Ali as crianças podem aprender a manobrar o veículo, a interagir com outros ciclistas, pedestres, skatistas e outras modalidades de esporte e lazer ativo. Acompanhadas da família, tomam as primeiras lições das quais, quem sabe um dia, conseguirão fazer uso autonomamente para locomover-se e cumprir funções sociais diversas.
Terceira idade: nestes espaços, muitos se reencontram com a bicicleta após décadas de separação. Com menos agilidade e reflexos mais lentos, algum desgaste ótico ou auditivo, fragilidade óssea e outras consequências naturais de se ter vivido bastante, os idosos encontram nestas vias uma condição segura e agradável de lazer ativo.
Segurança, com efeito, é a característica mais evidente dos circuitos. Pistas inteiras ou faixas separadas por cones, sinalização, agentes de trânsito ou monitores regulando o trânsito e orientando os convivas, tornam o espaço praticamente imune a acidentes com motorizados.
Alguns destes programas contam ainda com estruturas adicionais, como oferta gratuita de serviços e demonstração de produtos, atividades lúdicas, esportivas e artísticas, orientações educativas e de saúde, manutenção básica de bicicletas. Enfim, um ambiente mais completo e que reúne atividades complementares condizentes.
São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis, Belo Horizonte, Brasília, Balneário Camboriú, Salvador, Porto Alegre estão entre as diversas cidades brasileiras que oferecem a estrutura. O levantamento e monitoramento destas iniciativas é mantido pela UCB – União de Ciclistas do Brasil (uniaodeciclistas.org.br/biblioteca/recreativas) – apesar da atualização dos dados depender da informação dos próprios municípios, a lista está bem completa.
O maior ícone das vias recreativas em todo o mundo, que foi precursora e que serve de inspiração para muitas das que lhe seguiram, é a “Ciclovia” de Bogotá, na Colômbia (por lá, a infraestrutura viária permanente “ciclovia” é denominada “cicloruta”). Iniciou em 1974 e hoje reserva 120 km de ruas inteiras (ou faixas delas), que estão unidas aos 200 km de “ciclorutas”, recebendo dominicalmente não menos do que 1 milhão de pessoas.
Em todo continente americano existe mais de uma centena de atividades correlatas catalogadas, perfazendo um mosaico de idéias e possibilidades rico e instrutivo. E, mais que isso, a importância deste conjunto já justificou e mantém uma organização internacional, a rede Ciclovias Unidas de las Américas (www.cicloviasrecreativas.org).
As vias de recreação ativa são importantes por si e para além de si. Por si porque estimulam as atividades físicas ao ar livre e suprem, evidenciando, uma falta tremenda de espaços públicos de lazer. Costumam ser bonitas e agradáveis – portanto, atrativas –, geralmente explorando lugares onde no dia a dia tudo passa rápido demais.
E o além de si é o seu significado para a democratização do espaço público, ora sequestrado por pequenas propriedades privadas de metal, sejam em perigoso movimento nas ruas, sejam, estacionados, em inútil inércia. Trata-se de um respiro de decência civilizatória: tirar carros das ruas e entrega-los às pessoas.
E também tem grande significação para instigar, ao permitir a experiência, o deslocamento ativo dos seus praticantes para além do domingo matinal. Sempre brota, em um ou outro, uma sementinha de vontade de que as ruas sejam mais seguras e de poder fazer coisas simples de um modo simples e não invasivo: a pé, de bicicleta ou mesmo de skate e patins.
É por isso, então, que os cicloativistas são entusiastas das ciclovias de domingo. Elas permitem ampliar a comunicação entre os cidadãos e a cidade e inspirar, neles, desejo de transformação do espaço público. Neste sentido, as vias recreativas são instrumentos para reciclar as cidades.
Texto: André Geraldo Soares
Originalmente publicado na Revista Bicicleta, Ano 5, nº 45, p. 80, Out/2014
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