De uma Amazônia à outra
Meu ponto de partida para o 8º Foro Mundial de la Bicicleta foi a inscrição da apresentação “Bike na Obra: ação educativa para a construção de uma massa crítica”, sua seleção pela equipe organizadora do FMB8 e a contemplação pelo edital da União de Ciclistas do Brasil – UCB, que viabilizou passagem e ajuda de custo, fundamentais para a realização do sonho de participar do referido evento para trocar experiências, vivências e poder apresentar um projeto que tem dado certo em Belém, na esperança de vê-lo realizado para além das fronteiras nacionais.
Nos preparativos para a viagem, perguntei em um grupo de cicloturismo em uma rede social sobre o dilema de levar ou não a minha bicicleta dobrável. Um amigo cicloviajante me informou sobre os trâmites para usar a bicicleta pública em Quito, tempo de uso (45min), logística (ter que indicar o ponto onde deixará a bicicleta) e sobre o mau estado de conservação das mesmas. Com a companhia aérea cobrando R$60 por bagagem (bicicleta dobrável) para Quito e o mesmo preço para retornar com a minha magrela, resolvi não arriscar o empréstimo e garantir a imersão na cidade através da bicicleta.
A experiência de levar bicicleta em viagens me fez deixar de lado a minha malabike simples e optar pelo plástico transparente, pois quando o funcionário responsável pelo transporte da bagagem sabe o que está carregando, pode olhar o melhor local para carregá-la e ter mais cuidado com o que coloca sobre. Quando chegar ao destino é só enrolar o plástico e ele certamente terá menor volume que a malabike.
De um extremo a outro da Amazônia, distância aproximada de 3,300km, levei 19 horas, pois não havendo vôo direto, necessitei fazer escala em Brasília e conexão em Guarulhos-São Paulo, mais que dobrando o percurso e ampliando sobremaneira o tempo de deslocamento. Espera que seria desgastante se não fosse a companhia de camaradas de outros estados brasileiros que também contribuem para a promoção do uso da bicicleta no Brasil e no mundo.
Quito localiza-se em um vale incrustado na Cordilheira dos Andes e cercado de vulcões ativos e inativos, sendo a segunda capital do planeta com maior altitude, totalizando aproximadamente 2.850m de altura. Está atrás apenas de La Paz, na Bolívia, que chega a 3700m. Como algumas matérias brincam: uma cidade de tirar o fôlego! Graças a esta peculiaridade, foi-me recomendado aguardar algumas horas antes de pedalar, para me habituar com a altimetria e não sentir com muito impacto os efeitos colaterais. Achei prudente pegar um táxi para o hostel com os colegas e só me restou apreciar da janela do carro o bom estado de conservação da estrada, a generosa malha cicloviária e a topografia consideravelmente acidentada.
O meu primeiro dia de estadia, que antecipou em um dia o evento graças a inexistência de voos diários do Brasil para a região, possibilitou que eu me deslocasse de bicicleta na companhia de duas pessoas do Brasil, que também haviam levado bicicleta: Silvia Ballan (Cheguei de Bike) e Carlos Leandro de Oliveira (Carlos Greenbike / Pedala Queimados). Nos perdemos por algumas horas e a dificuldade com o idioma e o fato de ainda não termos adquirido um chip de telefonia móvel local para usar o GPS tornaria a situação mais difícil, não fosse o acolhimento e a prestatividade da população, sempre muito disposta a ajudar.
Quito foi a primeira cidade da América Latina a ser tombada como Patrimônio Histórico da Humanidade pela UNESCO e surpreende com a conservação de sua história material de diversos períodos históricos. Casarões bem conservados e como peculiaridade invejável para outras cidades históricas, as edificações históricas de uso comercial não possuem letreiros que disputam atenção com a historicidade. Extremamente discretos e padronizados em tipografia simples são instalados em alto relevo nas fachadas.
A ocupação da cidade andina deu-se há mais de uma década de milhares de anos, mas teve muito de sua história destruída pelos colonizadores europeus, segundo revelou um ciclista historiador no dia da “massa crítica” promovida pelo FMB8. Na Plaza de la independencia, há um chakra do planeta Terra, segundo o historiador, e lá havia um templo que fazia referência a este ponto de grande poder energético que ajuda a manter o planeta em equilíbrio. O lugar foi destruído para dar lugar a arquitetura europeia neoclássica inspirada no estilo francês, em alta na Europa na época. Resta no local apenas o disco de bronze encravado no chão ao qual recomenda-se parar em frente, respirar três vezes, fechar os olhos e colocar a mão direita sobre o mesmo para sentir a energia que ali circula.
O FMB8 aconteceu na região central de Quito, que é predominantemente histórica, não verticalizada e com boa presença de arborização urbana em ruas principais. Nas vias em que as calçadas são estreitas fica impraticável ter árvores, principalmente em ruas locais, mas o clima frio não torna o percurso ensolarado tão desgastante. Há boa presença de belas e generosas áreas verdes (praças e parques), com bons equipamentos em espaços infantis, para quem vai levar as crianças ao parque.
Durante os dias de estadia em Quito, minhas idas ou vindas do Centro de Convenciones Eugenio Espejo (local onde aconteceu a programação principal do FMB8) ao hostel Huasi Lodge, eram inspiradas no conceito de deriva praticado pela Internacional Situacionista em meados do século passado e o percurso que poderia se resumir em pouco menos de 1km se multiplicava na deambulação diária, reconhecendo novos pontos da cidade e interagindo com a população, numa verdadeira imersão na cidade.
Quito apresenta considerável malha cicloviária na região central. Presenciei muitos locais com demarcação de ciclorrota e confesso nunca ter me sentido tão seguro pedalando em uma via tipo canaleta e na frente de um ônibus em movimento. Em cinco dias de pedaladas urbanas, apenas um motorista de ônibus não tomou distância segura, um motorista de carro particular passou com sua caminhonete em alta velocidade em uma madrugada e dois ou três motoristas de carros de passeio não tomaram o devido afastamento lateral para me ultrapassar. No geral, dá para se sentir bastante seguro ao desbravar a cidade de bicicleta.
Dois extremos de Amazônia: Quito e Belém, separados por mais de três mil e trezentos quilômetros de distância e com uma topografia completamente destoante, que faz da cidade andina, apesar do clima quente e úmido, ser bem mais fria. Assim como o lado de cá da Amazônia, o lado de lá também possui pessoas sonoras: que falam alto, que sorriem ao cumprimentar, que querem mostrar o que há de melhor em sua localidade e que querem saber um pouco mais de sua vida. Estendem a conversa para deixar os encontros mais prazerosos e inevitavelmente demorados.
Em contrapartida, este temperamento falante faz com que eventualmente também buzinem bastante no trânsito para muitas situações, mas incrivelmente não para importunar ciclistas. Presenciei algumas reclamações em voz alta, buzinas, discussões, mas apenas uma vez, dos 5 dias pedalando, fui importunado por algum motorista. Vale contar o episódio em que parei em um cruzamento para olhar o GPS após uma deambulação e o motorista do ônibus parou e acenou para eu entrar na canaleta, achando que eu estava aguardando que ele passasse para eu seguir viagem. Neguei com gestos, mas ele insistiu tanto que guardei o celular e pedalei mais uns quarteirões até resolver tomar o rumo certo.
Cultura também rica em cores, aromas e sabores. Apresentações culturais no Fórum e nas ruas mostram a exuberância das cores das danças folclóricas, dos indígenas que se apresentam nas praças públicas e nas coloridíssimas máscaras de lã de alpacas da figura mitológica do Diablo Huma ou em mantas, lenços e demais peças de artesanato. Frutas vermelhas, que incrementam o desayuno (café da manhã) e colorem as ruas, feiras e mercados. Não podendo deixar de citar os famosos cafés e chocolates produzidos na região andina e o canelazzo, que é a bebida alcóolica da região que tem a peculiaridade de ser servida quente.
Ainda sobre a gastronomia de Quito, insere-se o abacate nas refeições salgadas, tal qual outros países latinos e há grande variedade de grãos, com destaque a generosa variedade de tipos de milho, com a presença recorrente de pipoca nas refeições que se assemelham a sopas. Destaque para o cevichocho, experimentado por muitos voluntários em nossa atividade da rede Bike Anjo no Parque de las Quadras. Cidade também bem servida em suas confeitarias e mercados de bairro, com deliciosas iguarias de pastéis a biscoitos de padaria, que fiz questão de saborear.
Não pude ir ao monumento referente a linha do equador (La mitad del mundo) fazer a foto com um pé em cada hemisfério ou equilibrar o ovo como fazem os turistas. Não visitei os vulcões ou naveguei até Galápagos ou fiz trilhas de Mountain Bike ou caminhando, mas a imersão urbana, nas ruas, praças, parques, feiras, mercados e principalmente o contato com a população local satisfizeram imensamente minha estadia no outro extremo amazônico.
Sobre o Fórum Mundial da Bicicleta
Em 2011, durante a realização de uma manifestação em prol da ciclomobilidade em Porto Alegre-RS, um crime de trânsito bárbaro e sem precedentes chocou o Brasil e o mundo: um motorista colidiu seu automóvel propositalmente contra o grupo de ciclistas provocando um atropelamento coletivo que atingiu 20 ciclistas.
No ano seguinte, 2012, resolveu-se criar o Fórum Mundial da Bicicleta para debater o uso da bicicleta nas cidades e criar uma conexão internacional para a troca de informações entre os ciclistas, suas realidades locais e apontamentos de um mundo mais inclusivo para as pessoas.
Em 2012 e 2013 foi realizado em Porto Alegre (Brasil), em 2014 em Curitiba (Brasil), em 2015 em Medelim (Colômbia), em 2016 em Santiago de Chile (Chile), em 2017 na cidade do México (México), em 2018 em Lima (Peru) e em 2019 em Quito (Equador). Em 2020 a realização acontecerá na cidade de Katmandu no Nepal e a assembleia final de Quito, foi decidido que o evento em 2021 será em Rosário, Argentina.
Em Quito, a expressão local Mingamos, que refere-se a troca de experiências, foi o mote do evento. Minhas impressões de primeira participação em um fórum mundial e segunda em evento internacional, foi a de que o FMB tem essa essência de propiciar efetivamente o que se propõe. Pessoas de diversas nacionalidades compartilhando a mesma paixão e espaço, buscando promover, potencializar ou disseminar ações que possibilitem a garantia do direito à cidade nas dezenas de diferentes realidades das centenas de participantes. A gratuidade do evento faz com que, diferente da minha experiência com a conferência internacional que participei ano passado, seja um evento socialmente inclusivo, o que possibilita um debate mais diverso enriquecedor.
Tive a oportunidade de interagir com pessoas de diversos lugares do Brasil, Equador, Colômbia (e brincar com os mesmos dizendo que também era colombiano), Argentina, Peru e Venezuela, além de estar e assistir experiências de diversas outras nacionalidades. Perceber que ações parecidas ganham novas potências de acordo com o local que são realizadas e abrem leques de outras possibilidades.
Sem sombra de dúvidas é um ambiente inspirador, que possibilita a ingestão de novas possibilidades teóricas e práticas para a busca da revolução comportamental que almejamos. Impossível voltarmos os mesmos depois de tantas apresentações que relacionam o uso da bicicleta e ações educativas, inclusão social, participação de mulheres, controle social, advocacy, tecnologia, turismo e arte. Há agora em mim, mais do que nunca, uma vontade visceral de contagiar outras pessoas para aplicar e replicar tudo o que foi visto e vivido.
Sobre a ação “Bike na Obra”
A ação educativa é realizada com trabalhadores e trabalhadoras da construção civil na cidade de Belém do Pará desde o ano de 2018. Inicialmente com ajuda do edital de fundo local Bike Anjo, atualmente conta com parceria para confecção do material com o Tribunal Regional do Trabalho da 8 Região, que abrange Pará e Amapá, e vislumbra atender diretamente em 2019 mais de mil profissionais que atuam na construção civil, com distribuição do kit que contém um calendário com infográfico, campainha, plaquinha e adesivo refletivos, e mais mil pessoas que utilizam a bicicleta como meio de transporte com ganho do calendário, que também tem sido distribuído para oficinas de bairro, multiplicando ainda mais o alcance do projeto.
Sobre a rede Bike Anjo
A rede Bike Anjo é uma rede de pessoas que amam e promovem o uso da bicicleta nas cidades. Surgiu em São Paulo em 2010 e rapidamente se ramificou pelo Brasil e mundo. Até o período do FMB8, haviam 7267 pessoas cadastradas na plataforma bikeanjo.org como voluntárias, espalhadas em 34 países nos cinco continentes do planeta.
Além do atendimento pela plataforma a atividade mais famosa da Rede é a Escola Bike Anjo – EBA!, que se trata de uma oficina de ensinar a pedalar realizada para pessoas de todas as idades: crianças, jovens, adultos e idosos, a qual foi realizada em Quito no último dia de evento. A rede Bike Anjo também possui diversas atividades importantes como inclusão de pessoas com deficiência em passeios de bicicleta, ações em escolas e grupo de mulheres. Possui atuação mais recente em incidência política em parceria com a União de Ciclistas do Brasil-UCB na campanha Bicicleta nos Planos e na promoção do deslocamento de bicicleta ao trabalho na campanha De Bike Ao trabalho.
No dia 28 de abril (domingo), último dia do FMB8, a rede Bike Anjo entrou na programação do realizando uma Escola Bike Anjo-EBA! no Parque de Las Cuadras. Percorremos cerca de 18km na ciclofaixa de lazer que mede 28,7 km e integra o norte ao sul de Quito. O coletivo de mulheres Carishinas en Bici, que atuam no empoderamento feminino através da bicicleta, fez a articulação para que a atividade acontecesse, emprestou bicicletas, nos guiou até o parque e nos ajudou a ensinar diversas pessoas que não sabiam andar de bicicleta e tiveram a oportunidade de aprender.
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Texto: Murilo Rodrigues – Licenciado pleno em Artes Plásticas e Arquiteto e Urbanista. É professor de Arte efetivo na Fundação Escola Bosque (Belém/PA), ciclista associado à UCB, militante pelo direito à cidade e voluntário da rede Bike Anjo e do Coletivo ParáCiclo.
Este texto foi composto para o Edital 01/2019 “Você no FM8” promovido pela UCB – União de Ciclistas do Brasil e financiado pelo Itaú como resultado da participação do/a autor/a no 8º Fórum Mundial da Bicicleta (Quito/Equador – 25 e 28/04/2019).