E a bicicleta federalizou-se!
A bicicleta é um típico veículo local. Embora haja quem com ela viaje o mundo, sua maior vocação, e aspiração de quase todos que a usam, é sua utilidade para o cotidiano nos arredores de casa – deslocamentos de até 6 km. Por isso, pode-se pensar que todas as intervenções para facilitar seu uso não precisem ir para além do gabinete do prefeito.
Os ciclistas brasileiros organizados em entidades – ou irmanados somente pela aspiração comum de equidade no trânsito –, não pensam assim. Como nas demais áreas da vida social – saúde, educação, esporte etc. –, a mobilidade também necessita de políticas públicas transversais e integradas, perpassando a administração pública estadual e alcançando a esfera federal.
Por entender assim, ciclistas brasileiros integrados na UCB – União de Ciclistas do Brasil levou a campo, e dela colheu bons frutos, uma campanha dirigida aos candidatos a presidente da República. Todos os 11 candidatos receberam oficialmente 14 propostas de políticas públicas a serem implementadas pela administração federal. Por ser requisitado o comprometimento com estas propostas em caso de vitória, a campanha denominou-se “Carta Compromisso com a Mobilidade Ciclística”.
O ponto de vista aqui defendido é que necessitamos políticas públicas estruturantes partindo “de cima” para, a partir dali, incidirem sobre todo o território. Isso inclui incentivos e redução tributária para a cadeia produtiva da bicicleta, do mesmo modo como feito para outros setores industriais, como o automobilístico e de eletrodomésticos; e também linhas de financiamento, crescentes a cada ano, para ampliar a malha cicloviária.
Cada prefeitura constrói suas ciclovias do jeito que acha mais bonito – ou do modo que atrapalhea menos os carros: então precisamos, finalmente, uma padronização mínima, o que se conseguirá por meio da definição de normas para a infraestrutura cicloviária – dimensão, pavimento, intersecções, sinalização, bicicletários etc. – e de capacitação para técnicos e gestores públicos.
Não se planeja sobre o que não se conhece, por isso o IBGE, no senso e demais pesquisas sociais, precisa incluir questões relativas à bicicleta. No campo legal, para favorecer a integração intermodal, o governo deve normatizar a bicicleta como bagagem nos meios de transporte coletivo. O mesmo ente também tem a responsabilidade de amansar, com ciclovias, as suas rodovias que atravessam perímetros urbanos.
Mas também defendemos que algumas ações, além do benefício em si, devem ser executadas pela união por causa do seu efeito pedagógico e demonstrativo para as demais unidades da federação: bicicletários em prédios públicos, incentivo ao cicloturismo, inclusão da bicicleta em políticas sociais e de erradicação da pobreza, programas educativos continuados e ampliação da participação da sociedade civil na formulação de políticas governamentais estão entre elas.
As propostas acima foram acatadas na íntegra por três e parcialmente por uma presidenciável. No primeiro turno, assinaram a Carta Eduardo Jorge, do PV, Marina Silva, do PSB e Luciana Genro, do PSOL; e, no segundo turno, a candidata Dilma Roussef, do PT, divulgou um documento próprio incluindo integralmente nove itens elaborados pela UCB e adaptando outros quatro, além de incluir três novos, nos quais menciona especificamente os pedestres.
Independentemente do efetivo cumprimento do compromisso por qualquer desses candidatos – o que será cobrado, todavia, daquela que saiu vitoriosa –, a campanha demonstrou que a bicicleta não está mais circunscrita à cidade, tampouco que se trata de uma demanda corporativista ou ingênua. Candidatos a presidente e seus altos formuladores políticos sentaram para discutir um assunto que, estimo, não teria repercutido desta forma nas eleições passadas, há apenas quatro anos.
A pertinência e o conteúdo destas reivindicações “federais” se sentiram ainda mais fortalecidas quando receberam o apoio, por meio de formulário próprio, de 66 entidades da sociedade civil, trabalhistas e da iniciativa privadas, de 79 candidatos ao poder legislativo (alguns dos quais foram eleitos) e de mais de 12 cidadãos em um abaixo-assinado.
Versões intermediárias, dirigidas aos candidatos a governador de estados, adaptando itens da Carta da UCB, também foram compostas por cicloativistas de Minas Gerais, de Pernambuco, do Amazonas (assinada por um candidato), do Paraná (assinada por 4 candidatos, incluindo o eleito) e do Distrito Federal (assinada pelo eleito).
Quem está acompanhando, há alguns anos, o crescimento gradativo do ciclismo como modalidade de mobilidade – no trânsito, na mídia, no comércio, na administração pública –, agora assistirá sua ascensão ao nível superior. Aumentam, com isso, as possibilidades de inclusão ciclística – consequentemente, melhorando a vida de quem já pedala e encorajando quem apenas o deseja –, mas também as responsabilidades e o trabalho para as mesmas pessoas e instituições que elevaram a bicicleta a esta condição.
Texto: André Geraldo Soares
Originalmente publicado na Revista Bicicleta, Ano 5, nº 46, p. 40, Out/2014