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08 de outubro de 2014

Deixem em paz quem precisa do carro!

congestionamento1É comum a queixa, por parte dos motoristas, de que o discurso ciclístico não considera que o carro é uma necessidade. “Eu preciso do carro, não posso pedalar nem andar de ônibus”, dizem uns. “Nós temos pressa, não atrapalhem o nosso trânsito”, imploram outros. Pois bem, por defendermos que a sociedade não pode abrir mão do carro, vou me aliar aos queixosos e pedir: ei, motoristas que não precisam usar carros, deixem em paz quem precisa deles!

Ou seja: ao invés de se fazerem de vitimados pelos ciclistas – que não pedem mais que seu justo quinhão –, quem precisa do automóvel deve reclamar com quem verdadeiramente paralisa e parasita a cidade e transforma a vida de todo mundo em um inferno.

Num extremo: ambulâncias precisam do trânsito desobstruído, entregadores de materiais de construção precisam de local para estacionar, mecânicos de elevadores têm pressa para liberar pessoas presas nos elevadores. E no outro extremo: dondocas que vão passear no shopping não precisam ir de carro, jovens sarados e sem outro compromisso não precisam de carro para cursar uma universidade, não dá pra cada membro da família ter seu próprio carro.

Entre um extremo (a sociedade precisa do carro) e outro (o uso supérfluo do carro paralisa a sociedade) existem infinitos casos, que ilustram tanto os benefícios e potencialidades dessa extraordinária ferramenta tecnológica que é um veículo a motor, quanto a incrível capacidade que o ser humano tem de desperdiçar recursos e de atrapalhar a vida alheia.

Não se pode afirmar, sem mais, que um carro é uma necessidade. Necessário é aquilo que não pode deixar de ser ou de se fazer, aquilo do qual não se pode abdicar, o que é essencial e imprescindível. Ora, muito poucos usos do carro cabem nessa definição.

Em primeiro lugar e diretamente porque uma boa parte do que é definido como necessário não passa de comodidade, de falta de hábito ou de pura preguiça. E, de forma ampla, porque a atual dependência do carro é originada do modelo de mobilidade urbana implantado pelo Estado para gerar o consumo de carros. Assim sendo, o que é necessário mesmo, mas mesmo realmente, é privilegiar o transporte público e o transporte a propulsão humana, para que os carrodependentes não possam alegar falta de condições para deixar de usar o carro e para permitir que o carro possa cumprir uma função social positiva.

Ou seja, quanto mais eficientes, confiáveis, seguros, confortáveis e baratos forem os ônibus, o ciclismo, as calçadas e as próprias ruas, mais pessoas poderão migrar do congestionamento e da guerra que causam para a fluidez e a paz que o transporte público, a bicicleta e o caminhar proporcionam.

Nós não precisamos, nem conseguiremos, definir com exatidão o que é um uso necessário do carro, menos ainda impedir que quem não se encaixe nesse perfil use o carro. Mas é plenamente possível planejar uma cidade e oferecer mais de uma alternativa adequada para as necessidades de deslocamento de cada cidadão.

Portanto, antes de tudo, é preciso pesquisa, levantamento de dados sobre a mobilidade urbana: conhecer a quantidade, funções, extensões, destinos e rotas dos deslocamentos que os membros das famílias fazem cotidianamente. Só assim será possível dimensionar o transporte público e a infraestrutura cicloviária, só assim tais modalidades poderão ser desenhadas de forma adequada e tornarem-se atraentes mesmo para quem tem crise de abstinência quando está longe da cabine do seu possante.

Mas é preciso querer essa transformação e, receitinha da autoajuda, correr atrás do seu desejo. Quem tira o carro da garagem todo dia está respaldando o modelo automotivo e, mais do que autorizando, solicitando que os gestores públicos canalizem mais grana para viadutos, vias expressas e estacionamentos. Quem afirma que não deixa o carro porque o transporte coletivo é ruim e porque a bicicleta é perigosa, este elemento está enganando tanto a si próprio quanto aos seus concidadãos, porque quem é maior de idade já teve experiência social suficiente nessa vida para saber que a prefeitura não vai democratizar a cidade sem a pressão social nesse sentido.

Os ciclistas ativistas também se compadecem de quem fica preso inutilmente no asfalto, além de lamentarem a energia e a matéria prima consumidas em vão e as toxinas e dejetos danosamente emitidos por um sistema que não funciona e nunca vai funcionar em lugar nenhum. E muitos desses ciclistas até estariam dispostos a abandonar os motoristas no buraco em que se meteram se eles não levassem, com isso, toda a sociedade para lá. Já há ciência suficiente e ética inquestionável para demonstrar o apocalipse motorizado, a tal ponto de poderemos duvidar da sanidade de quem não as considera.

Então, se não for pelos ciclistas e pelos pedestres, que vocês desdenham em atos e omissões, que seja em favor de vocês mesmos: motoristas, deixem em paz quem precisa do carro.

 

Texto: André Geraldo Soares

Originalmente publicado na Revista Bicicleta, Ano 4, nº 40, p. 46, Mai/2014

 

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